Mundo Digital
O
progresso tecnológico trouxe para a humanidade uma série de benefícios, isso é
indiscutível.
Por
um lado isso é bom, mas por outro, deixa as pessoas menos sensíveis, menos
humanas, mais indiferentes.
As
instituições seguiram pelo mesmo caminho, e foram se tornando frias, embora
eficientes.
Mas
esse problema não passou despercebido aos olhos do jovem psicólogo.
Ele
estava sempre disposto a entender quando as pessoas precisavam dele para
dividir suas dores.
E compreendia também que nem sempre falar é a melhor
solução.
Conta
ele que, logo que iniciou sua carreira profissional, numa clínica de orientação
para crianças, certo adolescente chegou para vê-lo.
Ele
foi até à recepção e percebeu o rapaz que andava de um lado para o outro,
agitado e assustado.
Levou-o
até sua sala e lhe indicou a cadeira do outro lado da mesa.
Era
fim do outono.
A árvore em frente à janela não tinha folhas.
Sente-se
disse ao jovem.
Divino
vestia uma capa preta impermeável, abotoada até o pescoço.
O
rosto estava pálido.
Torcia as mãos com nervosismo e olhava fixamente para os
pés.
Seu
pai falecera quando era bebê.
Foi criado pela mãe e pelo avô.
Mas no ano
anterior, quando Divino tinha 13 anos, o avô faleceu e a mãe morreu num
acidente de carro.
Agora,
com 14 anos, estava em tratamento.
O
diretor da escola o havia encaminhado, com um bilhete: "esse garoto
encontra-se muito triste e deprimido, o que é bastante compreensível. No
entanto, ele se recusa a falar com quem quer que seja. Estou muito preocupado.
Você pode ajudar?"
O
jovem psicólogo olhou para o garoto.
Como poderia ajudá-lo?
Há tragédias
humanas para as quais a psicologia não tem respostas, para as quais não há
palavras.
Às
vezes, ouvir com toda a atenção e sentimento é o mais apropriado, pensou.
Nas
duas primeiras visitas Divinas não falou.
Afundado na cadeira, só levantava os
olhos para fixá-los nos desenhos infantis que decoravam a parede.
Quando
Divino saía do consultório, após a segunda sessão, o doutor colocou a mão sobre o seu ombro. O
garoto parou.
Não se retraiu, mas, ainda assim, não olhou para ele.
Venha
na próxima semana, se quiser, disse.
Fez uma pausa e acrescentou:
"sei que
é doloroso."
Divino
veio e de imediato o doutor sugeriu que jogassem xadrez.
O
rapaz fez que sim com a cabeça.
Os
jogos de xadrez continuaram todas as quartas-feiras à tarde, em silêncio total
e sem contato visual da parte do garoto.
Embora
não seja fácil trapacear no xadrez, o médico sempre fazia de tudo para que
Divino ganhasse uma ou duas vezes.
O
menino chegava cedo, procurava o tabuleiro e as peças na estante. Começava a
arrumá-las antes mesmo que o médico sentasse. Parecia estar gostando da ideia.
Mas por que nunca me olhava? Pensava.
Talvez
ele precise simplesmente de alguém com quem dividir a dor.
Talvez sinta que
respeito à dor dele.
Concluiu.
Numa
tarde, quando o inverno dava lugar à primavera, Divino tirou a capa e a colocou
nas costas da cadeira.
Enquanto
arrumavam as peças do jogo de xadrez, seu rosto parecia mais animado, os
movimentos mais vivos.
Alguns
meses depois, quando flores já recobriam a árvore lá fora, médico olhava Divino
enquanto ele se inclinava sobre o tabuleiro.
Pensava que pouco se sabe sobre
terapia, sobre os misteriosos processos de cura.
De
repente, o garoto levantou os olhos e disse:
"sua vez."
Depois
disso, Divino começou a falar.
Fez amigos na escola e entrou para o clube de
ciclismo.
Um
dia chegou um cartão postal de Divino que dizia: "estou passeando de
bicicleta com amigos e me divertindo muito."
Tempos
depois médico recebeu uma carta em que Divino falava que pretendia ir para a
universidade.
O
médico ofereceu algo a Divino, mas certamente aprendeu como o tempo pode tornar
possível superar o que parece dolorosamente insuperável.
Aprendeu,
ainda, como estar lá quando alguém precisa dele. E que se pode entrar em
contato com outro ser humano sem usar palavras.
Só é preciso um abraço, um
toque gentil, um ouvido atento, um coração solidário.
O
mundo depois de nós tem que ser melhor, porque caminhamos sobre ele. Se não
pudermos ser um sol esplendoroso, contentemo-nos em ser um simples vaga-lume.
O
importante é iluminar.
Eliane
de Pádua