sexta-feira, 7 de setembro de 2012

O grande despertar


               


Os prédios, a fumaça que escapa dos ônibus, o asfalto que faz a pista em que meu carro segue o outdoor iluminado que faz meu olho arder, o barulho das bocas humanas que emerge da praça de alimentação do shopping Center. 

Coisas que estão comigo. 

Coisas que a minha e a sua mente encontraram no meio do caminho dessa vida. 

Coisas para as quais nós arranjamos nomes.

É difícil fechar os olhos e fazer com que todas essas coisas desapareçam. 

Eu sei que também é difícil para você porque o mundo que nossa mente cria acaba por nos aprisionar. 

Até quando conseguimos dormir, o mundo, com suas coisas, com seus nomes, nos invade e rapta nossa mente, deixando-a entorpecida, esgotada. 

Alguém poderia dizer: “até quando dormimos, parece que estamos acordados”, mas a verdade é bem outra e eu acho que de alguma maneira você sabe o que eu estou dizendo.

“Até quando estamos acordados, nós dormimos”.

Diz o sutra da Flor de Lótus da Maravilhosa Lei, que existem tantos budas quanto os grãos de areia do Ganges e que se cada grão de areia do Ganges for outro Ganges com seus grãos de areia, essa seria a quantidade de budas no mundo.

Olho para uma foto de uma estátua de um desses infinitos budas. 

Ela deve estar ornando a entrada de algum templo na Tailândia ou no Vietnã, eu não tenho idéia. 

O curioso é que o Buda, com a planta dos pés voltada para cima, está de olhos suavemente fechados.

Aquele que desperta, aquele que acorda, está de olhos fechados e esse é o primeiro grande ensinamento que a imagem daquele Buda do sudeste da Ásia nos passa: 

É preciso aprender a esquecer do nome das coisas para que a nossa mente se liberte do sono que o mundo nos impõe. 

É preciso aprender a não ouvir, para que o barulho que mora em nós não nos arraste em um vai e vem sem fim pelo meticuloso labirinto de fatos que nossa mente configurou. 


Aquilo que parece morar fora de nós, àquilo que passa ao nosso lado, também é nosso, porque nós e o mundo fazemos parte de uma mesma grande ilusão. 

De um imenso sonho sonhado por todos ao mesmo tempo. 

Não dizer, não reter nenhum pensamento, não reconhecer nenhum som, não identificar nenhum cheiro, não ser seduzido por nenhum gosto. 

Acordar é, na experiência do Buda, estar presente no mundo, sem que o mundo esteja presente em nós. 

Ser, sem que nossas memórias e nossas expectativas nos aprisionem. 

Abandonar a si mesmo, sem desaparecer.

Você deve estar pensando que não se pode viver assim. 

Lógico! 

Como você vai viver assim? 

Sobreviver é só mais uma forma de manter-se adormecido em meio ao mundo. 

Mas não é necessário morrer para acordar, como pensavam os gregos órficos, praticantes de uma seita oriental que aportou no mediterrâneo em algum ponto entre o século VI e IV antes de cristo, muito provavelmente originado da mesma Índia que viu nascer o budismo.

No budismo, acordar e adormecer são conexos. 

É possível manter-se acordado algum tempo, mas sempre voltamos a dormir. 

Estar como o Buda, em estado meditativo, em um ponto fora do espaço e do tempo é parte do processo. 

Retornar também. 

Conviver novamente em meio aos adormecidos é uma das inevitabilidades da vida. 

Por isso o príncipe Sidarta, um dos infinitos budas, caminhou muitos e muitos quilômetros pelo norte da Índia depois de ter atingido seu despertar. 

O que importa da experiência budista não é o “barato” de estar em meditação, ou relaxamento mental e corporal que se segue após um passeio pela eternidade. 

O que importa é o sistema ético que emerge dessa experiência. 

A radical transformação que o príncipe Sidarta protagonizou em sua história de despertar, leva a um conjunto de valores constituídos pelas “nobres verdades” e pelos caminhos que levam a ação correta.


O budismo difere de boa parte das religiões da humanidade porque sua preocupação fundamental não é o de explicar como o mundo é o que ele é, nem porque ele é assim. Muito pouca metafísica alimenta a experiência budista. Perder tempo com debates sobre a origem do universo e seu sentido não faz parte dos nobres caminhos do budismo.

Não há referências a Deus ou deuses no budismo e as presenças de espíritos ou manifestações rituais que aparecem no budismo tibetano, por exemplo, nascem da fusão do caminho de Sidarta com as práticas xamanísticas dos povos asiáticos. 

Quando os que ouviram Sidarta (segundo a tradição) perguntaram sobre a origem do universo, ele teria respondido: “quando um homem é ferido por uma flecha e deseja conhecer, antes que a retiremos dele o nome, a casta, os pais e o país de origem de seu agressor, ele põe ele mesmo em risco de morte. Quanto a mim, eu ensino a retirar a flecha”.

Essa é uma mensagem fundamentalmente ética, um ensinamento que leva a idéia de uma atitude, de uma postura, de um posicionar-se diante do aprisionamento do mundo. 

Todas as inumeráveis discussões filosóficas e teológicas que animaram a tradição cristã durante dois milênios passam longe do budismo. Seu sentido fundamental é a construção de um sistema de valores morais a partir de uma experiência de libertação, com pouca ou nenhuma justificativa racional para pôr sobre a mesa dos céticos.


Sidarta teria dito antes de morrer: “cada homem é sua própria prisão”, isso significa justamente que não importa quem ou o que inventou esse estranho sonho que eu e você sonhamos juntos, o que importa é o caminho que nos desperta...


Eliane de Pádua

Pablo Capistrano


Nenhum comentário:

Postar um comentário