Sei apenas que há um amor mais
comum, do dia-a-dia, que é nosso velho conhecido, um amor datado, um amor que
muda com as décadas, o amor prático que rege o "eu te amo" ou
"não te amo".
Já vi esse amor
mudar muito.
Quando eu era jovem, o amor era um desejo
romântico, um sonho político, contra o sistema, amor da liberdade, a busca de
um "desregramento dos sentidos".
Depois, foi ficando
um amor de consumo, um amor de mercado, uma progressiva apropriação indébita do
"outro".
O ritmo do tempo acelerou o amor, o dinheiro contabilizou o
amor, matando seu mistério impalpável.
Hoje, temos controle, sabemos por que
"amamos", temos medo de nos perder no amor e fracassar na produção.
A
cultura americana está criando um "desencantamento" insuportável na
vida social.
O amor é a recusa desse desencanto.
O amor quer o encantamento que
os bichos têm, naturalmente.
Por isso, permitam-me hoje ser uma falsa "profunda"
(tratar só de política me mata...) e falar de outro amor, mais metafísico, mais
seminal, que transcende as décadas, as modas.
Esse amor é como uma demanda da
natureza ou, melhor, do nosso exílio da natureza.
É um amor quase como um órgão
físico que foi perdido.
Como escreveu o Ferreira Gullar outro dia, num genial
poema publicado sobre a cor azul, que explica indiretamente o que tento falar:
O amor é algo "feito um lampejo que surgiu no mundo/ essa cor/ essa
mancha/ que a mim chegou/ de detrás de dezenas de milhares de manhãs/ e noites
estreladas/ como um puído aceno humano/ mancha azul que carrego comigo como carrego
meus cabelos ou uma lesão oculta onde ninguém sabe".
Pois, senhores, esse amor existe dentro de nós como uma fome
quase que "celular".
Não nasce nem morre das "condições
históricas"; é um amor que está entranhado no DNA, no fundo da matéria.
É
uma pulsão inevitável, quase uma "lesão oculta" dos seres expulsos da
natureza.
Nós somos o único bicho "de fora", estrangeiro.
Os bichos
têm esse amor, mas nem sabem.
Esse amor bate em nós como os frêmitos primordiais das células do
corpo e como as fusões nucleares das galáxias; esse amor cria em nós a sensação
do Ser, que só é perceptível nos breves instantes em que entramos em compasso
com o universo.
Nosso amor é uma reprodução ampliada da cópula entre o espermatozoide e óvulo se interpenetrando.
Por obra do amor, saímos do ventre e
queremos voltar, queremos uma "reintegração de posse" de nossa origem
celular, indo até a dança primitiva das moléculas.
Somos grandes células que
querem se re-unir, separados pelo sexo, que as dividiu. ("Sexo" vem
de "secare" em latim: separar, cortar.)
O amor cria momentos em que
temos a sensação de que a "máquina do mundo" ou a máquina da vida se explica
em que tudo parece parar num arrepio, como uma lembrança remota.
Como disse
Artaud, o louco, sobre a arte (ou o amor) :
"A arte não é a imitação da
vida. A vida é que é a imitação de algo transcendental com que a arte nos põe
em contato."
E a arte não é a linguagem do amor?
E não falo aqui dos
grandes momentos de paixão, dos grandes orgasmos, dos grandes beijos - eles
podem ser enganosos.
Falo de brevíssimos instantes de felicidade sem motivo, de
um mistério que subitamente parece revelado.
Há, nesse amor, uma clara
geometria entre o sentimento e a paisagem, como na poesia de Francis Ponge,
quando o cabelo da amada se liga aos pinheiros da floresta ou quando o seu
brilho ruivo se une com o sol entre os ramos das árvores ou entre as tranças da
mulher amada e tudo parece decifrado.
Mas, não se decifra nunca, como a poesia.
A poesia é um desejo de retorno a uma língua primitiva. O
amor também.
Melhor dizendo: o amor é essa tentativa de atingir o impossível,
se bem que o "impossível" é indesejado hoje em dia; só queremos o
controlado, o lógico.
O amor anda transgênico, geneticamente modificado, fastlove.
"O amor vive da incompletude e
esse vazio justifica a poesia da entrega.
Ser impossível é sua grande beleza.
Claro que o amor é também feito de egoísmos, de narcisismos, mas ainda assim,
ele busca uma grandeza - mesmo no crime de amor há um terrível sonho de
plenitude.
Amar exige coragem e hoje somos todos covardes.
Mas, o fundo e inexplicável amor acontece quando você
"cessa", por brevíssimos instantes.
A possessividade cessa e, por
segundos, ela fica compassiva.
Deixamos o amado ser o que é e o outro é
contemplado em sua total solidão.
Vemos um gesto frágil, um cabelo molhado, um
rosto dormindo, e isso desperta em nós uma espécie de "compaixão"
pelo nosso desamparo.
Esperamos do amor essa sensação de eternidade.
Queremos nos
enganar e achar que haverá juventude para sempre, queremos que haja sentido
para a vida, que o mistério da "falha" humana se revele, queremos
esquecer, melhor, queremos "não-saber" que vamos morrer, como só os
animais não sabem.
O amor é uma ilusão sem a qual não podemos viver.
Como os
relâmpagos, o amor nos liga entre a Terra e o céu.
Mas, como souberam os
grandes poetas como Cabral e Donne, a plenitude do amor não nos faz virar
"anjos", não.
O amor não é da ordem do céu, do espírito.
O amor é uma
demanda da terra, é o profundo desejo de vivermos sem linguagem, sem fala, como
os animais em sua paz absoluta.
Queremos atingir esse "absoluto", que
está na calma felicidade dos animais.
Eliane de Pádua
enriquecer.elianedepadua@gmail.com
enriquecer.elianedepadua@gmail.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário