Os prédios, a fumaça que escapa dos ônibus, o asfalto que faz
a pista em que meu carro segue o outdoor iluminado que faz meu olho arder, o
barulho das bocas humanas que emerge da praça de alimentação do shopping Center.
Coisas que estão comigo.
Coisas que a minha e a sua mente encontraram no meio
do caminho dessa vida.
Coisas para as quais nós arranjamos nomes.
É difícil fechar os olhos e fazer com que todas essas coisas
desapareçam.
Eu sei que também é difícil para você porque o mundo que nossa
mente cria acaba por nos aprisionar.
Até quando conseguimos dormir, o mundo,
com suas coisas, com seus nomes, nos invade e rapta nossa mente, deixando-a
entorpecida, esgotada.
Alguém poderia dizer: “até quando dormimos, parece que
estamos acordados”, mas a verdade é bem outra e eu acho que de alguma maneira
você sabe o que eu estou dizendo.
“Até quando estamos acordados, nós dormimos”.
Diz o sutra da Flor de
Lótus da Maravilhosa Lei, que existem tantos budas quanto os grãos de areia
do Ganges e que se cada grão de areia do Ganges for outro Ganges com seus grãos
de areia, essa seria a quantidade de budas no mundo.
Olho para uma foto de uma estátua de um desses infinitos
budas.
Ela deve estar ornando a entrada de algum templo na Tailândia ou no
Vietnã, eu não tenho idéia.
O curioso é que o Buda, com a planta dos pés
voltada para cima, está de olhos suavemente fechados.
Aquele que desperta, aquele que acorda, está de olhos
fechados e esse é o primeiro grande ensinamento que a imagem daquele Buda do
sudeste da Ásia nos passa:
É preciso aprender a esquecer do nome das coisas
para que a nossa mente se liberte do sono que o mundo nos impõe.
É preciso
aprender a não ouvir, para que o barulho que mora em nós não nos arraste em um
vai e vem sem fim pelo meticuloso labirinto de fatos que nossa mente
configurou.
Aquilo que parece morar fora de nós, àquilo que passa ao nosso
lado, também é nosso, porque nós e o mundo fazemos parte de uma mesma grande
ilusão.
De um imenso sonho sonhado por todos ao mesmo tempo.
Não dizer, não
reter nenhum pensamento, não reconhecer nenhum som, não identificar nenhum
cheiro, não ser seduzido por nenhum gosto.
Acordar é, na experiência do Buda,
estar presente no mundo, sem que o mundo esteja presente em nós.
Ser, sem que
nossas memórias e nossas expectativas nos aprisionem.
Abandonar a si mesmo, sem
desaparecer.
Você deve estar pensando que não se pode viver assim.
Lógico!
Como você vai viver assim?
Sobreviver é só mais uma forma de manter-se
adormecido em meio ao mundo.
Mas não é necessário morrer para acordar, como
pensavam os gregos órficos, praticantes de uma seita oriental que aportou no
mediterrâneo em algum ponto entre o século VI e IV antes de cristo, muito
provavelmente originado da mesma Índia que viu nascer o budismo.
No budismo, acordar e adormecer são conexos.
É possível
manter-se acordado algum tempo, mas sempre voltamos a dormir.
Estar como o
Buda, em estado meditativo, em um ponto fora do espaço e do tempo é parte do
processo.
Retornar também.
Conviver novamente em meio aos adormecidos é uma das
inevitabilidades da vida.
Por isso o príncipe Sidarta, um dos infinitos budas,
caminhou muitos e muitos quilômetros pelo norte da Índia depois de ter atingido
seu despertar.
O que importa da experiência budista não é o “barato” de estar em meditação, ou
relaxamento mental e corporal que se segue após um passeio pela eternidade.
O
que importa é o sistema ético que emerge dessa experiência.
A radical
transformação que o príncipe Sidarta protagonizou em sua história de despertar,
leva a um conjunto de valores constituídos pelas “nobres verdades” e pelos caminhos que levam a ação correta.
O budismo difere de boa parte das religiões da humanidade
porque sua preocupação fundamental não é o de explicar como o mundo é o que ele
é, nem porque ele é assim. Muito pouca metafísica alimenta a experiência
budista. Perder tempo com debates sobre a origem do universo e seu sentido não
faz parte dos nobres caminhos do budismo.
Não há referências a Deus ou deuses no budismo e as presenças
de espíritos ou manifestações rituais que aparecem no budismo tibetano, por
exemplo, nascem da fusão do caminho de Sidarta com as práticas xamanísticas dos
povos asiáticos.
Quando os que ouviram Sidarta (segundo a tradição) perguntaram
sobre a origem do universo, ele teria respondido: “quando um homem é ferido por uma
flecha e deseja conhecer, antes que a retiremos dele o nome, a casta, os pais e
o país de origem de seu agressor, ele põe ele mesmo em risco de morte. Quanto a
mim, eu ensino a retirar a flecha”.
Essa é uma mensagem fundamentalmente ética, um ensinamento
que leva a idéia de uma atitude, de uma postura, de um posicionar-se diante do
aprisionamento do mundo.
Todas as inumeráveis discussões filosóficas e
teológicas que animaram a tradição cristã durante dois milênios passam longe do
budismo. Seu sentido fundamental é a construção de um sistema de valores morais
a partir de uma experiência de libertação, com pouca ou nenhuma justificativa
racional para pôr sobre a mesa dos céticos.
Sidarta teria dito antes de morrer: “cada homem é sua própria prisão”,
isso significa justamente que não importa quem ou o que inventou esse estranho
sonho que eu e você sonhamos juntos, o
que importa é o caminho que nos desperta...
Eliane de Pádua
Pablo Capistrano |
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