domingo, 20 de agosto de 2017

QUANDO OS ANOS DOBRAM



Eu recordo... 
(falava a senhora, no círculo de amigas, como ela era.)

Impetuosa, falava sem pensar.

Dizia o que vinha à cabeça e achava que era dona do mundo.

Caprichosa, queria as coisas do seu jeito e gritava, e exigia, sem parar.

Meticulosa, atinha-se a mínimos detalhes.

Arrumava o quadro que estivesse um milímetro torto na parede, arrumava o enfeite sobre a mesa.

Entrava em casa e seus olhos procuravam algo que estivesse fora do lugar, para ela ter o prazer de colocar no lugar.

E reclamar de quem não o colocara exatamente como ela desejava.

Seu armário de roupas era impecável.

Todas as roupas alinhadas, divididas por estação, por cores.

Ela podia procurar uma roupa no escuro e a encontrar.

Mas, ai de quem ousasse mexer no seu armário.

Ela tinha a capacidade de saber se alguém sequer abrira o armário.

E era motivo para uma grande discussão.

Tinha os livros em uma grande biblioteca.


Separados por autor.
Por assunto.
Tudo em absoluta ordem alfabética, para facilitar a busca.


Naturalmente, ninguém podia tocar nos livros a não ser que ela apanhasse a obra e a entregasse em mãos.

E as recomendações eram inúmeras.

"Cuidado com a capa. Não amasse. Lave bem as mãos antes de abrir o livro."

Sim, ela era assim.

Nada do que qualquer pessoa fizesse era suficientemente bom para ela.

Ela fazia a limpeza da casa, porque ninguém fazia como ela.

E consumia as horas em ordenar, alinhar, agrupar, ajustar.

Para tudo ficar sempre impecável.

Um brinco.

O tempo passou.

E descobriu que ela estava errada em muitas coisas.

Quando sua irmã partiu, bruscamente, levada por um acidente de carro, sentiu o coração despedaçar.

Então, olhando a casa vazia da sua presença, perguntava de que valia tudo estar em ordem, impecável?

Ela daria tudo para que ela estivesse ali, e entrasse e bagunçasse os seus livros, a sua louça, as suas coisas.

Queria vê-la abrir seu armário e escolher uma roupa para vestir, retirando da ordem tanta coisa que estava ali, parada, sem uso.

Depois, partiu seu irmão, sua mãe.

Um a um, eles se foram.

E, a cada partida, ela foi descobrindo que o bom é se tivesse a casa para as pessoas entrarem e se sentirem bem.

Viverem, sem serem sufocadas.

Descobriu que mais importante do que tudo, aquelas presenças agora ausentes é que davam mesmo sentido à sua vida.


E, então, ela mudou.

Ainda gosta sim, das coisas arrumadas, em ordem.

Mas, sem exageros.

Seus sobrinhos entram em sua casa e brincam.

E pulam, sentindo-se à vontade.

Senta-se com eles no chão para folhear os livros, ler histórias, olhar gravuras.

E enquanto estão lendo, comem pipocas, chocolates.

Tomam suco.

Como é bom saborear histórias com alguém ávido de curiosidade.

Mesmo que tenha os dedinhos sujos de chocolate ou engordurados pela pipoca.

Seu armário de roupas já não anda tão intocável assim.

As sobrinhas adoram procurar algo diferente para usar.

Nem que seja para o baile à fantasia com suas amigas.

Aprendeu a aceitar o trabalho alheio e respeitá-lo, agradecendo.

As horas que passaria encerando, limpando, lustrando, lavando, ela dedica às crianças, aos jovens, aos seus amores.

Sim, ela mudou muito.

A vida lhe ensinou.



Pena que ela tenha precisado receber tantos recados de perdas, para poder aprender.

Poderia ter sido muito mais feliz, desde há muito tempo.

Agradece a Deus, no entanto, ter acordado a tempo de ainda desfrutar muitas alegrias, na Terra.

Sinceramente espero que ninguém precise passar por isso para aprender.

Que essa história sirva de lição para nós que estamos envelhecendo. 







Eliane de Pádua




Nenhum comentário:

Postar um comentário